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Uma visita a Tokaj

   Durante o mês de junho, estive visitando algumas regiões vinícolas do velho mundo e tive o prazer de passar três doces dias em Tokaj, região onde são elaborados alguns dos melhores vinhos de sobremesa do mundo. Situada no nordeste da Hungria, com um pequeno trecho cobrindo o território eslovaco, a região de Tokaj-Hegyalja é protegida desde 1737, quando foi declarada uma área exclusiva de vinhos através de um decreto real, e em 2002 tornou-se Patrimônio Mundial da UNESCO.
   Em uma área de 275 quilômetros quadrados, as videiras dividem espaço com belíssimas plantações de girassóis e pequenos vilarejos pitorescos repletos de lojinhas de vinhos e badulaques e de restaurantes com ótimas comidas a bom preço. Andar pelas ruas das vilas de Tokaj é como voltar no tempo, longe da correria e do movimento das grandes cidades, a vida parecendo andar mais devagar. E não tente fazer alguma compra ou mesmo uma refeição entre as 14 e 16 horas, pois eles seguem o costume da sesta, tão difundido em várias regiões da Europa.
   Algumas vinícolas dividem espaço com o comércio nos vilarejos, outras já se encontram mais afastadas, mas quase todas oferecem visitação e degustação. Encontramos o Chateau Dereszla quase por acaso. Estávamos voltando do almoço em um restaurante de Bodrogkisfalud (ainda bem que aqui só tenho que escrever e não preciso pronunciar) naquele horário em que tudo está fechado e nos deparamos com a fachada imponente da vinícola e, para nossa grande surpresa, estava aberta. A vinícola possui um bar onde são oferecidos vários tipos de degustação e onde você ainda pode comprar doces, temperos e queijos típicos da região. Dentro do pacote, você ainda pode conhecer as caves subterrâneas e ter uma pequena aula sobre os métodos de produção e sobre os vinhos que está degustando, tudo em inglês. Eles produzem desde vinhos secos elaborados com a Furmint, a Háslevelü e a Muscat, até os vários estilos de Tokaji, passando pelos Late Harvest, os Szamorodni, os Ászú e o maravilhoso Eszencia.

   Para quem ainda não teve o prazer de conhecer os diversos tipos de Tokaji, vou dar uma ligeira explicação sobre os principais estilos. Os Late Harvest são elaborados com uvas colhidas tardiamente, ou seja, que são deixadas na videira por mais tempo depois de já estarem maduras, o que causa uma desidratação dos bagos e uma alta concentração de açúcar, permitindo a produção de vinhos naturalmente doces.
   Szamorodni significa "assim como nasce". As uvas são deixadas maduras na videira e são atacadas pela Botrytis Cinérea, fungo responsável pela podridão nobre em condições propicias. Manhãs úmidas que permitem o surgimento da Botrytis, que perfura a casca das uvas, e tardes quente e secas que abrandam o seu desenvolvimento e fazem com que a água da polpa se evapore concentrando os açúcares, os sabores e os ácidos. Além disso, ela adiciona sabores únicos ao suco. Mas o fungo não ataca as uvas igualmente. No mesmo cacho, podem existir bagos botrytizados e bagos sãos. Os vinhos Szamorodni são feitos com todas as uvas sem uma seleção, podendo em alguns anos ter maior quantidade de uvas afetadas pela podridão nobre e em outros uma menor quantidade e podem ser doces ou secos.

   Os Tokaji Aszú são elaborados a partir de um vinho base produzido com uvas sãs onde serão adicionados os bagos aszú, ou seja, atacados pela Botrytis. A quantidade de bagos irá definir o nível de doçura e a classificação do vinho, que será de 3 a 6 puttonyos. O puttony é uma espécie de balde utilizado como medida e cada balde representa um puttonyo a mais na classificação do vinho e mais concentração e intensidade de doçura e sabor.
   Antes de viajar para Tokaj, quando eu ouvia a expressão "néctar dos deuses", imaginava uma bebida concentrada, doce e com sabores maravilhosos e difíceis de descrever. Imaginava algo inatingível para pobres mortais e que só existia nas estórias mitológicas dos deuses gregos e romanos. Hoje eu sei que este néctar existe e o nome dele é Tokaji Eszencia. Elaborado apenas com o mosto flor dos bagos aszú, é difícil de ser encontrado fora da região e custa muito caro. As uvas botrytizadas são esmagadas e o suco obtido neste primeiro momento é escoado sem prensagem, separado das cascas e colocado para fermentar. A sua concentração de açúcar é tão grande que as leveduras terão dificuldade para trabalhar e a fermentação pode durar anos e, ainda assim, os vinhos terão baixíssimo teor alcoólico, na faixa de 5%. A grande doçura do Eszencia é equilibrada pela alta acidez e os sabores são extremamente concentrados. O vinho é viscoso e pesado na boca como um néctar deve ser. Tive a oportunidade de desfrutar desta maravilha por dois momento em Tokaj e me senti um pouquinho mais perto do céu!
   A vinícola Oremus é uma das mais conceituadas na região de Tokaj e era o nosso foco principal. Foi fundada em 1993, pela família Alvarez, proprietária do grupo TEMPOS Vega Sicilia da Espanha. Mas as instalações e os vinhedos remontam ao século 13 e pertenciam à Ordem Católica Romana dos Paulinos. No início do século 16, as terras foram confiscadas e passaram a ser de propriedade da nobreza do país. Quando a família Alvarez adquiriu a propriedade, construíram uma adega moderna mas aproveitando os porões e labirintos do século 13, transformando a vinícola em um exemplo de tradição e modernidade.
   Entramos em contato com o setor comercial da vinícola e nos apresentamos como estudantes WSET e fomos recebidas com hora marcada. Antes de sermos conduzidas para o labirinto de túneis seculares, recebemos grossos agasalhos de pele para nos proteger do frio intenso das caves. Naquele interior de pedras antigas cobertas por fungos, passamos por séculos de história da produção vinícola de Tokaj tentando ser preservado com o mínimo de interferência, deixando o bolor do tempo crescer livre e naturalmente. Depois nos despimos dos grossos casacos e fomos conduzidas para as áreas modernas da vinícola e pudemos perceber como a industria do vinho evoluiu ao longo dos anos. A vinícola conta com uma grande estrutura para o enoturismo e as suas instalações chegam a ser luxuosas com amplos jardins muito bem cuidados, banheiros claros e com produtos de toalete de primeira linha e decoração impecável com móveis modernos e confortáveis.
Os três baldes ao centro são chamados de puttony e servem de medida para a classificação dos Tokaji Aszú.

   Se toda a visita já tinha nos impressionado muito positivamente, a degustação nos impressionou muito mais! Foram degustados seis vinhos e, como é de praxe em Tokaj, iniciamos por um vinho seco elaborado com a Furmint. O Mandolas 2016 se mostrou muito mineral  e com alta acidez. Um vinho agradável e refrescante. O Tokaji Late Harvest 2015 passou seis meses em barricas de carvalho e foi elaborado com 50% de Furmint, sendo os outros 50% divididos entre a Háslevelü, a Muscat e a Zeta. Com 90 gramas de açúcar residual já possui boa doçura e untuosidade, bom corpo e aromas de flor de laranjeira, damasco e mel.
   Fomos surpreendidas por uma degustação vertical do Tokaji Aszú 5 Puttonyos e tivemos a possibilidade de experimentar e comparar as safras de 2009, 1999 e 1972. O 2009 foi fermentado e envelhecido em barricas por dois anos e apresentava 11,5% de teor alcoólico e 145 gramas de açúcar residual, coloração dourada de média intensidade, aromas e sabores de baunilha, mel, pêssego em calda e casca de laranja. Muito corpo e untuosidade, acidez alta e muita persistência na boca. A safra de 1999 passou pelo mesmo processo de elaboração e envelhecimento, apresentava o mesmo teor alcoólico e quantidade de açúcar residual e já apresentava sinais de evolução com a sua coloração dourada intensa e os aromas de amêndoas, mel e baunilha sobressaindo aos aromas de frutas em calda. Com sabores muito concentrados e acidez bem preservada, achei que os dez anos passados em garrafa só lhe fizeram bem. O 1972 foi elaborado de forma um pouco diferente pois passou por uma ligeira fortificação. As técnicas vinícolas da época eram bem menos avançadas e este era um recurso muito utilizado para a melhor preservação dos vinhos. O teor alcoólico era de 12% e o açúcar residual de 130 gramas. Na taça, a coloração castanha já denunciava a sua idade avançada e os aromas terciários reinavam  trazendo nozes, amêndoas, caramelo e bala toffee. Mas no paladar se mostrou muito untuoso, vivo, com acidez bem preservada, sabores concentrados e final persistente.

   Se eu já tinha quase chorado de emoção quando me vi prestes a degustar o Tokaji Aszú 1972, um vinho de 45 anos de idade, foi ainda mais difícil me conter ao ver que o que fecharia a degustação com chave de ouro seria o Eszencia 2008. Com apenas 3% de teor alcoólico, este néctar contém 520 gramas de açúcar residual. Com coloração dourada intensa e aromas de mel, casca de laranja e damasco seco, ele é muito tudo. Extremamente untuoso, com muita acidez, muito corpo, muito doce, final muito longo e muito gostoso! Um mel líquido! Se eu fosse fazer uma lista sobre os 10 vinhos que se deve beber antes de morrer, com certeza este estaria no topo.
   Foi uma experiência incrível e fico feliz em partilhar um pouquinho. No próximo texto, vou falar mais sobre minhas visitas a regiões vinícolas do outro lado do oceano. Vou ficando por aqui e desejo a todos uma ótima semana com grandes vinhos! Santé!
 

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